sexta-feira

Tão só sede


Pediu a Júlia que a deixasse ver o manuscrito. A curiosidade venceu-a. Queria saber mais do homem com quem se cruzara e aquela era a forma ideal. Julia não lhe dissera nada de propósito. Deixara tudo em branco para a amiga descobrir. O sorriso que deixava desenhar-se fazia antever agradáveis surpresas.
Foi uma cópia do manuscrito que guardou na pasta que a acompanhava sempre. Parecia-lhe levar um pedaço da alma do homem que tão mal conhecia. Pareceu que sentia o coração um pouco mais acelerado. Não podia ser. Era só mais um manuscrito qualquer. Estranhara ver as letras desenhadas num tempo em que os computadores dominavam e faziam as letras terem um só dono e uma só mão a dominar os riscos. Num tempo em que as personalidades se esvaíam no sempre igual que os teclados dominam. Não percebera ainda porque não lhe tinham exigido que tivesse uniformizado a letra e a forma de apresentar a obra. Ocorreu-lhe a forma clara como percebeu as palavras que lhe vieram de imediato à memória “ Se Deus em mim te tivesse feito água, seria nem margem, nem escolho, tão só sede!”.

quarta-feira

Fado Sagitário



Se foi Deus que quis assim
Nem tu sabes nem eu sei
Mas tenho-te presa a mim
Por tudo o que não te dei


Se eu te desse o que tu queres
Quem sabe se nesse dia
Depois de tu me prenderes
Eu nunca mais te prendia


E se me queres como sou
Não me queiras prisioneiro
Não te daria o que dou
Se me desse por inteiro
Só posso dar-te o que dou
Porque não me dou por inteiro
Só espero que tu entendas
Que prefiro que me deixes
A deixar que tu me prendas


Bem sei que é contradição
Eu pedir-te liberdade
Sabendo que a condição
É ficar preso à saudade

quinta-feira

Existirão?


Existirão acasos ou sómente pedaços de coisas que a pouco e pouco mesmo de forma desordenada se vão encaixando na vida de cada um?
Existirão acasos ou estaremos nós por momentos distraídos, perdidos na balbúrdia dos dias que teimamos em viver na corrida desenfreada do fim sem nos deixarmos embalar por tanto quanto se intermeia e afinal é quanto vale?
Existirão acasos ou pequenos milagres que a pouco e pouco dão sentido às vidas bafientas e poluídas que vestimos sem dar conta ao romper das manhãs assim que os sonhos se esvaziam e os pesadelos se pôem de pé?
Existirão acasos ou pequenas reticências, esperanças em pausas ritmadas que dão melodia a uma vida que doutra forma se tornaria monocórdica?
Sofia vivera na sua vida muitos acasos. Muitos viveria ainda. Traziam-lhe sempre algo novo, fresco, revitalizador. Muitas vezes as respostas para as muitas perguntas que se costumava fazer. Era uma mulher muito introspectiva. Podia não verbalizar muito do que sentia, mas sentia sempre muito. Demais, até. E talvez não fosse por acaso.

quarta-feira

Coisas do acaso


Sempre perdida em pensamentos Sofia mal se dá conta das horas que passam. É de novo o toque do telefone que a alerta do tempo que passou. Já desço, apressa-se a dizer não deixando falar a amiga.
Encontra Júlia ansiosa de lhe contar cara a cara as novidades mas teimosa em guardar a surpresa para quando chegasse ao escritório. Finge não se importar e conversam de trivialidades durante todo o percurso. Acabam mesmo por combinar uma ida às compras após a ida ao escritório. Há já algum tempo que Sofia andava a namorar uma blusa numa loja do centro comercial. Apetecia-lhe comprá-la e talvez mais alguns acessórios. Queria arejar um pouco. Esquecer o pé engessado.
Chegaram ao escritório e Júlia levou-a até ao seu gabinete. Em cima da secretária ao lado dum manuscrito estava um contrato recentemente assinado, algumas fotos e ainda duas chávenas de café por arrumar. Já sei, contrato novo. Boa! E quem é? Conhecemos? Não me digas que era alguém de quem eu andava atrás?! Era isso que me querias dizer?
Júlia interrompe-a. Descansa. É mais alguém que anda atrás de ti. Bem... Não será isso. Mas alguém que últimamente te tem acompanhado. Por sentimento de culpa e... Acho que por mais motivos... Mas isso é convosco.
Sofia não leva muito tempo a perceber. Pega no contrato e confirma. Frederico Esteves. Não lhe conhecia o apelido, mas só podia ser ele. O contrato que ele ia assinar só podia ser aquele. Coincidência . Saberia ele daquilo?
Não. Não sabia. Só quando se encontrou frente a frente com Júlia percebeu tudo. Foi a primeira vez que se viram pessoalmente naquela situação. Frederico acabara de se mudar e tratara de tudo com a editora mas noutra localidade. Acabara por decidir assinar contrato só agora quando se mudara. Coisas do acaso.

terça-feira

Intervalo


Às vezes perco-me na vida de Sofia e páro um pouco. Não sei já se falo dela ou de mim. Se me debruço nas varandas dos seus sonhos, receios ou só memórias ou se é nas minhas que vagueio. Então sustenho-me. Encho os pulmões de ar, fecho os olhos e estendo-me para lá de mim. Porque é isso que quero fazer quando dela falo. Quando falo dos seus amigos, namorados, parentes... Exilar-me num mundo em que as memórias não me fazem falta, não são a argamassa de que me construo. São então um apêndice qualquer que num dia qualquer sob o risco duma infecção qualquer se extirpa dum corpo a que não faz falta nem dá sentido.
Procurar os meus rumos perdendo-me na vida dos personagens que crio torna-se um vício que teimo em perder. Por isso me alongo, me distancio e de longe observo os movimentos que podendo ser meus são doutros porque não os quero adoptar. E não querendo ser outra acabo por ser a que crio no inverso da meada que teço.

quinta-feira

O tempo


Chega um tempo em que não se diz mais: meu Deus.
Tempo de absoluta depuração.
Tempo em que não se diz mais: meu amor.
Porque o amor resultou inútil.
E os olhos não choram.
E as mãos tecem apenas o rude trabalho.
E o coração está seco.
Em vão mulheres batem à porta, não abrirás.
Ficaste sozinho, a luz apagou-se,
mas na sombra teus olhos resplandecem enormes.
És todo certeza, já não sabes sofrer.
E nada esperas de teus amigos.
Pouco importa venha a velhice, que é a velhice?
Teus ombros suportam o mundo
e ele não pesa mais que a mão de uma criança.
As guerras, as fomes, as discussões dentro dos edifícios
provam apenas que a vida prossegue
e nem todos se libertaram ainda.
Alguns, achando bárbaro o espetáculo
prefeririam (os delicados) morrer.
Chegou um tempo em que não adianta morrer.
Chegou um tempo em que a vida é uma ordem.
A vida apenas, sem mistificação.

Carlos Drummond de Andrade

Os homens


Sofia atende o telefone e fica a falar com Júlia durante algum tempo. Desliga o telefone com ar intrigado e apressa-se a acabar o seu banho. Agora tinha razões maiores para ir mais depressa ao escritório. Júlia iria buscá-la depois de almoço, já que durante o almoço estava ocupada com um cliente e não poderiam falar.
Frederico tinha-a deixado antes de ir assinar um contrato qualquer. Não lhe perguntara o quê nem ele lho dissera. Afinal nada sabia da vida dele. Em todo o tempo que passavam juntos nunca conversaram de coisas pessoais. Eram coisas banais e divertidas num tom sempre atencioso que vinham á baila. Parecia-lhes bastar isso. Afinal ele estava sómente a ajudá-la por se sentir na obrigação de o fazer... O que era curioso é que parecia sentirem-se bem e tudo lhes parecer fácil e normal.
Os homens... Nunca tivera dificuldades em relacionar-se com o sexo oposto. Tudo fluía naturalmente até que por vezes as vidas se cruzasssem de forma mais profunda. Aí começavam as grandes diferenças entre todos os homens com quem se cruzara. Com todos aprendera novas formas de estar e ser. Crescera e fizera de si o que era hoje. Com as alegrias, as tristezas, os sonhos e as desilusões, fez-se mais forte. Construiu-se outra, perdendo e ganhando aqui e ali. Descobriu-se mulher inteira no renascer das amarguras do amor. Não se tornara uma mulher fria, mas sabia agora distanciar-se das coisas e vê-las numa perspectiva mais alargada. Como se o propósito das coisas não lhe pertencesse só a ela. Fosse parte de algo maior. Sentia que nada lhe acontecia por acaso e que nada lhe pertencia verdadeiramente. Como se fizesse parte dum todo que ganhava ou perdia conforme ela o fizesse. Decidira não se deixar vencer.