segunda-feira

As memórias


Havia dias que traziam memórias que ninguém chamava. Vinham devagarinho e instalavam-se sem licença em pedaços de rotinas em que já não pensamos e fazemos sem nos dar conta. De repente o incómodo instala-se e só se sente real quando uma dor de cabeça se instala ou uma lágrima teimosa rola de forma inadvertida numa altura nada apropriada cara abaixo. Outras vezes são sorrisos, humores estranhos em tempos aziagos. As pessoas que presenciam tais sobressaltos estranham e questionam-se. Os que as vivem perguntam-se o que as faz vir ao de cima.
Sofia sente-se um bocado perdida no meio destes desencontros em que ora está bem, ora se sente em baixo. Sente-se a reviver coisas que pretendia arrumadas. Sempre fizera questão de deixar as coisas no seu lugar. Não sabia se era o facto da amiga estar a passar de novo pela historia do Francisco, ou se era a falta que sentia de Maria que já não via há umas semanas. As praxes, as frequências, os amigos novos levavam-lhe a filha e as conversas a que estava acostumada. Os telefonemas eram cada vez mais curtos, embora continuassem a ser diários. Faltava-lhe o calor do abraço e a presença á noite. Podia até ser só aquele vulto na cama. Bastar-lhe-ia isso.
Quantas vezes ia até ao seu quarto, ficava á porta encostada de luz apagada tentando adivinhar-lhe ainda o cheiro e a presença. Como podiam as memórias não vir visitá-la? Eram o tempero que lhe faltava. Dedicara-se demasiado á filha. Fizera-o de propósito. Pela incapacidade de olhar para si. Pelo medo de se ver e encontrar. Ocupara todos os cantos da sua vida para não haver lugar para os Franciscos que via as amigas amarem.
Não, ainda não arrrumara ainda o que julgava ordenado. Pusera apenas num quarto escuro de que ainda conservava o medo que ganhara ainda criança.
No escuro tudo podia acontecer. Sofia não tinha ainda forças nem vontade para abrir os olhos e fazer luz naquele quarto abandonado e trancado não sabia ainda por quanto tempo. Suspeitava-lhe os vultos. Ficava á porta. Como fazia no quarto da Maria Henrique.

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