sexta-feira

Francisco



Se hoje voltara ao carro não era porque adiara o projecto da bicicleta. Era só aquela chuvinha. De qualquer forma dera para pensar noutras coisas e reafirmar as decisões que tomara. A Júlia que não a chateasse muito. Ainda há pouco tempo com a história do Francisco ela tivera razões de sobra para lhe apontar ironias feitas agulhas certeiras.
A Sofia sempre gostara do Francisco. Nunca achara era que fosse homem para ficar por ali. Aconchegado no colo que lhe oferecia a doce Júlia. Era homem de muitas viagens ainda por fazer. Duma avidez que ainda ninguém ainda podia saciar por completo. Achava ainda que não se podia perder numa só mulher, num só continente, numa só vida. Tinha a sofreguidão inscrita na alma. Uns olhos de sorver mundo. Uma alma de o acalentar.
Entregava-se inteiro e prometia-se completo. Era o sonho de todas as mulheres. Era o sonho que habitava a Júlia.
Quando ela o conheceu ocasionalmente numa exposição de quadros seus e o ouviu falar calorosamente de pintura sentiu que tinha encontrado alguém que finalmente a poderia entender. Alguém que falava com a mesma alma das mesmas coisas que ela falava e vivia. Convidou-o para um copo. Passaram o fim-de-semana juntos. Por incrível que pareça só falaram, viram exposições, espreitaram livros, ouviram músicas que descobriram a dois e beberam muitos copos. Quando a semana começou trocaram contactos. Voltaram a ver-se no fim-de-semana seguinte e noutros e fizeram outras e muitas coisas.
A Júlia andava radiante. Flutuava. Pintava como nunca. As ideias e os projectos nasciam em catadupa. O Francisco parecia fecundar a sua criatividade. Nunca a Sofia vira assim a sua amiga. Ficara feliz por ela.
No entanto Francisco desaparecia de quando em vez. Não ficava por muito tempo. Parecia precisar de respirar outros ares como se sufocasse se por ali ficasse muito mais tempo. Quem estava de fora via-o murchar como murcha uma planta. Os olhos perdiam o brilho. A voz o viço. Os movimentos o encanto. Perdia-se de si. Só A Júlia não conseguia ver extasiada na vida que ele lhe injectava. Agarrava-o com ternura, enlaçava-o em abraços cheios de doçura e embalava-o. Dizia que estava cansado e precisava de descansar. Ela fá-lo-ia descansar. Beijava-lhe os olhos, embalava-o e ao som de “Teardrop” dos Massive Attack, fazia-o adormecer.

Sofia tentava avisá-la. Júlia só percebeu quando ele não voltou um dia. Não há ironias que se apontem a amigas que sofrem. Mesmo que a ironia seja doce. Se há ironias que o são…

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